HINO CINQUENTENÁRIO

quarta-feira, 12 de março de 2014

Eles não moram no Sertão, mas sabem o que significa lutar por água

Crianças, adultos e idosos vivem o drama da falta de abastecimento em plena RMR 

O uso de poços artesanais, privilégio de alguns, que se solidarizam com os vizinhos e acabam tentando suprir um papel que não é o deles: distribuir água é apenas um dos inúmeros pontos de uma realidade difícil e muitas vezes cruel vivida por tantos pernambucanos. Alguns cobram pela água que conseguem, outros investem mesmo na solidariedade e até se compadecem. Como afirma o autônomo Paulo Brazil, 52, morador do bairro de Arthur Lundgren I, em Paulista, Região Metropolitana do Recife (RMR), um dos que conseguiram construir um poço em casa: “Parece até que estamos no Sertão”, diz. Clique no Leia mais...



A busca por água não é exclusiva dos sertanejos nem dos que rezam pelo início das chuvas
Crianças, adultos e idosos conhecem bem o que significa buscar em outros lugares a água que não chega às torneiras de casa. Alguns enfrentam longas filas com seus baldes e garrafas, sob sol quente ou chuva, para garantir o armazenamento do necessário para viver com o mínimo de higiene e conforto em poços e bicas com acesso liberado para consumo. Mesmo com a água barrenta, eles preparam seus alimentos, lavam pratos e roupas e tomam banho, ao menos.

Entre os personagens citados nesse especial sobre a água, um representa bem o envolvimento de toda a família na tarefa necessária de garantir água para consumo: um garoto de oito anos que se diz feliz por poder ajudar ao pai na companhia de sua garrafa pet sem ter que deixar os estudos e brincadeiras desta fase da vida. “Eu não tenho preguiça. Eu gosto. Gosto de ajudar o meu pai”, afirma sorrindo a caminho de uma bica a 300 metros de sua casa.

Priscilla, de três anos, desconhecendo o real significado de ter que andar cerca de 200 metros para pegar água barrenta para toda uma família, também faz questão de acompanhar o pai de 66 anos com um copinho plástico para levar água para casa. “Toda vez que ela me vê carregando água, ela quer ajudar. Ela fica tão feliz que você nem imagina", revela o pai, que mora com toda a família no Cabo de Santo Agostinho, às margens da Barragem de Pirapama, que tem o maior sistema de abastecimento de água de Pernambuco e um dos maiores do Brasil.



Um bairro chamado Cascata, mas sem água há 15 anos

Moradores dos pontos mais altos do local dependem da ajuda de poços artesanais


DANILO AGUIAR
- Do Portal FolhaPE

Todos os dias, a falta de água na Região Metropolitana do Recife (RMR) mobiliza milhares de pessoas. Mesmo em lugares planos ou de vale, onde o líquido deveria chegar com mais facilidade, é comum esperar por ela por dias, até semanas. Em áreas mais altas e entre morros, a pouca pressão vertical dos canos da Companhia de Saneamento de Pernambuco (Compesa) torna o quadro ainda mais instável, obrigando as pessoas a subir e descer ladeiras por quilômetros para obter a água. É nessa situação que se encontra o bairro que, não por ironia, chama-se Cascata, em Jaboatão dos Guararapes. Lá, quase quatro mil moradores sofrem há mais de 15 anos com o descaso do poder público em relação à ausência de água.

Foto: Bruno Campos

Caixa d'água foi desativada há anos por falta de uso. Serviço teve que ser suprido por poços
O bairro é subdividido em quatro áreas: do Canto, Baixa, do Meio e de Cima. As duas primeiras ainda recebem água no encanamento. Na terceira, que tem áreas mais elevadas, alguns moradores já começam a ser atingidos com o recesso. À medida que se segue para o ponto mais distante e elevado do morro, na quarta parte, a pressão diminui até que quase nenhum morador receba o líquido em casa. Essa é a que mais sofre com o desabastecimento.

"Com frequência, as bombas também apresentam mal funcionamento devido à constante oscilação da energia elétrica"
A ajuda vem de algumas pessoas que furaram poços artesanais nos pontos mais baixos do bairro e que, por meio de bombas d’água, levam a água para o topo”, comenta dona de casa Joselita de Souza Santos, que mora há 30 anos em Cascata. Mas esse é um recurso que não é garantido, pois, com frequência, essas bombas apresentam mal funcionamento devido à constante oscilação da energia elétrica. “Como a bomba não recebe eletricidade suficiente, não tem força para transportar a água, que chega muito fraca às nossas casas. Algumas até pifam”, revela a dona de casa. Construídas pelos próprios moradores, seis cacimbas são um auxílio na hora de estocar água.

A moradora afirma que, mesmo com a falta d’água, as faturas referentes ao “consumo” continuavam chegando em sua casa e na dos vizinhos. “Eu e outras pessoas tivemos que mandar cancelar a água porque não tinha lógica pagar por um serviço que não estava sendo prestado”, explica.

Joselita diz que desde a infância convive com falta de água em sua casa. “Nós ficávamos madrugadas em claro aproveitando o abastecimento para encher baldes e lavar roupas”, relembra. Além do péssimo estado dos canos, o fechamento de uma caixa d’água da Compesa deve ter piorado a situação. “Antigamente, uma central de distribuição no bairro de Santo Aleixo fazia o repasse ao reservatório no topo de Cascata. Mas, há 20 anos, esse reservatório deixou de funcionar. Com isso, a falta de água passou a ser constante”, comenta.
Fotos: Bruno Campos

Presidente da associação de moradores da comunidade diz que problema já foi denunciado para todos os meios possíveis, "mas a solução nunca veio"

Joselita Inácia: “Um engenheiro disse que o sistema teria que passar por um processo de substituição muito caro, o que não compensaria à empresa”
Assim como a questão da energia elétrica já é de conhecimento da Companhia Energética de Pernambuco (Celpe), o problema com a água já foi relatado à Compesa diversas vezes pelos moradores. Segundo Joselita, a Companhia explica que o problema está no encanamento que deveria atender as casas da região. “Um engenheiro colocou na tubulação um aparelho para entender o estado dos canos. Ele disse que a água não tem condições de subir para o topo do morro porque, além de muito antigo e enferrujado, o sistema teria que passar por um processo de substituição muito caro, o que não compensaria à empresa”, lamenta.

O uso de bombas d’água não foi a primeira tentativa de se adaptarem à realidade. “Já tentamos sobreviver com carros-pipa, mas isso foi deixado pra lá por conta da dificuldade que o caminhão tem para chegar até a parte alta, além do custo adicional de transporte. Tentaram também cavar poços na ladeira, mas por causa da altitude foi difícil achar água”, afirma Josefa dos Santos. Outra opção era o riacho que passa por trás de onde a dona de casa mora, “mas que hoje em dia já não passa mais água”, detalha.

“O eterno racionamento já foi tema de um encontro, há quatro anos, entre políticos, representantes da comunidade e a diretoria da Compesa”, segundo o presidente da União de Moradores da Cascata, Reginaldo Francisco, que há oito anos trabalha pelos interesses dos moradores. O propósito era o de analisar qual era a situação do bairro, “mas terminou sem ser lançada nenhuma proposta concreta de mudança”, critica.
Foto: Bruno Campos

Noé Delfino é um dos poucos que têm o privilégio de ter um poço, dividido com os vizinhos
Segundo dona Josefa, os moradores já não aguentam mais o sentimento de impotência. “Nós não temos recursos para manter o estoque de água por dias seguidos. E sabendo disso, nada é feito para ajudar a localidade. Isso tudo nos dá um sentimento de desprezo, de abandono”, reclama. Já para Reginaldo Francisco, a pior parte no problema com a água é não poder ter uma casa bem higienizada. “A gente tem que reduzir o uso da água pra tudo, porque se abusarmos do estoque temos que encarar o fato de, no dia seguinte, não ter água. Temos que tomar banho de bacia, reutilizar água de banho pra usar na descarga. Não há ninguém por nós”, conclui.




Comunidade de Paulista sofre com o racionamento

Moradores dizem que calendário não tem hora certa e a água pode chegar a qualquer hora


HENRIQUE FERREIRA
- Do Portal FolhaPE

Quem vive em locais onde há água nas torneiras todos os dias não imagina o drama que a população que reside em regiões de morro, que estão mais afastadas da Capital, enfrenta para conseguir ter o líquido em casa. Entre os que conhecem bem esta difícil realidade estão moradores do bairro de Arthur Lundgren I, em Paulista, Região Metropolitana do Recife (RMR), que precisam enfrentar rotineiramente uma verdadeira saga para driblar o abastecimento precário na localidade.




Muitas delas precisam subir e descer escadarias e ladeiras carregando baldes pesados por grandes distâncias, como faz a cozinheira Noêmia de Oliveira, de 49 anos, moradora da rua ironicamente batizada de “Veneza”, na parte alta do bairro. Ela conta que de três em três dias faz o trajeto de quase dois quilômetros entre idas e vindas para ter a água que é utilizada nos afazeres domésticos, como lavar roupa, cozinhar e tomar banho. “Por só temos água de três em três dias, e olhe lá, preciso descer o morro para encher meus reservatórios com um conhecido que tem poço artesiano, pelo menos uma vez na semana. Enfrento a maratona de subir e descer a ladeira várias vezes carregando baldes para poder ter condições de realizar os afazeres domésticos. Essa realidade é encarada não exclusivamente por mim, não só na minha rua, mas por uma grande parte da população que vive aqui”, lamenta.
Foto: Leo Motta

Rubeli Silva diz que sofrimento se agrava pela falta de um horário para abertura dos registros. Há cinco anos ela não tem hora para cordar

"Estamos a mercê da boa vontade dos outros, já que somos reféns de um sistema de abastecimento que favorece uma minoria", lamenta a aposentada
Vejo os meus vizinhos e fico comovido. Parece até que estamos no Sertão”. (Paulo Brazil, morador que optou por construir um poço)
Ainda segundo a moradora, já faz um bom tempo que a população da parte alta de Arthur Lundgren I passa pelo problema e não consegue mais imaginar uma melhora. “Há cinco anos convivemos com esse absurdo. Imagine a pessoa tomando banho toda ensaboada e, de repente, falta água. Ou então, as roupas lavando na máquina aí acontece o corte. A verdade é que não há como mudar essa realidade. Estamos a mercê da boa vontade dos outros, já que somos reféns de um sistema de abastecimento que favorece uma minoria. Agora a conta, essa chega certinha todo mês, sem atraso e para todo mundo”, desabafa.

Já a aposentada Rubeli Silva Amparo, 61, residente da rua Água Preta, reclama que não há horário certo pra que o registro seja aberto e, por conta disso, o sofrimento se agrava. Segundo ela, “existe um calendário, no qual só informam o dia que vai ter água. A gente nunca sabe a hora certa de abrirem o registro, tanto faz ser pela manhã, tarde ou noite. Às vezes é só de madrugada, ou seja, a pessoa precisa ficar sem dormir e ainda torcer para que a água venha com força suficiente a ponto de completar a caixa”.
Foto: Leo Motta

Paulo Brasil: "Tem dias que filas enormes se formam para encher baldes na minha porta"
Uma outra realidade vive o autônomo Paulo Brazil, 52, que construiu um poço artesiano em casa e resolveu ajudar os vizinhos: “Vejo os meus vizinhos passando por essa dificuldade e fico comovido. Sempre que precisam, se dirigem até minha residência, na rua Manoel Damásio, e pegam a água. Me vejo na obrigação de ajudar, mas acho isso uma falta de respeito com a população. Tem dias que filas enormes se formam para encher baldes na minha porta. Parece até que estamos no Sertão”.



Tarefas diárias: estudar, brincar e coletar água na fonte

Para algumas crianças, ir à bica é sinônimo de lazer, para outras, obrigação


DANÚBIA JULIÃO
- Especial para o Portal FolhaPE

Foto: Leo Motta

No Ibura, Ruanderson, de oito anos, faz questão de ajudar o pai a levar água para a família
Ruanderson Gusmão de Santana, de apenas oito anos de idade, desde cedo concilia as brincadeiras de criança e a escola com a tarefa cotidiana de ajudar o pai a completar a água da casa da família, que é formada ainda por um bebê de oito meses. No bairro do Ibura, na zona Sul do Recife, água encanada só uma vez a cada três dias. Mas a família já viveu momentos de maior dificuldade, quando o líquido não chegou às torneiras durante 15 dias.

“Eu não tenho preguiça. Eu gosto. Gosto de ajudar o meu pai. Eu faço isso de manhã, de tarde ou de noite” Ruanderson Gusmão, 8 anos”
Pequeno, mas já com postura de adulto, o garoto não reclama e, de certa forma, já incorporou a responsabilidade, e entende as dificuldades e necessidades que tem que enfrentar. Pelo menos três vezes por semana, ele e o pai, Rogério José de Santana, de 32 anos, andam quase 300 metros até a “Bica dos Milagres”, que fica às margens da BR-101, onde jorra água todos os dias, e a população daquele lugar e das proximidades encontra o alívio na hora da dificuldade.

“Eu não tenho preguiça. Eu gosto. Gosto de ajudar o meu pai. Eu faço isso de manhã, de tarde ou de noite. Depende se lá tem muita gente. Mas eu sempre vou à escola e também nunca tive que parar de brincar para ir”, disse o garotinho, que no passo longo acompanha o pai levando uma garrafa pet, mas com a satisfação de quem se desdobra para ajudar.
Fotos: Leo Motta

Família recebe água encanada uma vez a cada três dias

Bica que fica às margens da BR-101 ajuda a aliviar as dificuldades
Segundo Cícera Maria de Gusmão, de 25 anos, mãe do garoto, mesmo chegando uma vez a cada três dias, a água ainda é pouca. “Ela vem às 8h e vai embora às 13h, e não dá para encher a caixa. E na maioria das vezes vem barrenta. Se não fosse essa bica não sei o que iríamos fazer”, diz. A prática da família já dura mais de 10 anos. No verão, a dificuldade ainda é maior. “Às vezes deixamos o balde lá de um dia para o outro, porque tem uns 200 na frente”, contou Rogério. Famílias inteiras chegam a passar horas na fila e, quando alguém não pode ficar, se faz presente marcando o lugar com seus baldes e garrafas até que possa voltar e garantir o armazenamento do mínimo necessário para as necessidades diárias.




“Essa água, minha mãe usa para fazer picolé, que ela vende; suco, o mingau do meu irmão, para a gente tomar banho, lavar prato e também levo na lancheira para a escola. Muitos colegas meus compram água, mas a gente pega na bica”, disse Ruanderson. Debaixo do sol rachando, e com o suor descendo pelo rosto, cansado? Mesmo ofegante, ele diz que não, com o sorriso no rosto.




Morar junto à barragem não é garantia de abastecimento

Famílias que vivem às margens de Pirapama não têm nem torneiras em casa


JÚLIA MONTENEGRO
- Do Portal FolhaPE

Morar em frente a Barragem Pirapama, que tem o maior sistema de abastecimento de água de Pernambuco e um dos maiores do Brasil, não é garantia de ter água encanada. Residindo há 12 anos no povoado do Meninote, no Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife, as famílias Nogueira e Conceição só veem o líquido de longe. Na casa deles não chega nenhuma gota de água. Para isso, eles têm que encarar o árduo trabalho de buscar, em baldes, o líquido em um poço, localizado a cerca de 200 metros da casa deles.

Foto: Leo Motta
De difícil acesso, sem água nem energia, casa de Noel é o retrato do esquecimento
“Ainda bem que Deus protege muito a gente. Allana nunca teve nenhuma doença" Noêmia da Conceição, 26, sobre sua filha de dez meses”
"Não sei por que, mas a água não chega até aqui. Por conta disso, a gente nem chegou a instalar torneira", revelou a dona de casa Maria Margarida Nogueira, de 38 anos, esposa do aposentado Noel Jorge Nogueira, de 66 anos, mãe de Priscilla, de três anos, e de outros dois filhos, que não moram mais com ela. Ainda de acordo com Margarida, como é conhecida, eles conseguem água porque o marido dela construiu uma cacimba. "A gente pega água no poço e traz em um balde na cabeça ou no carro de mão. Quando o meu esposo está em casa, ele que vai buscar. O ruim é que é longe e o balde é pesado. É muito cansativo", comenta a dona de casa. O acesso às casas é difícil, a área não é pavimentada e, quando chove, fica alagadiça. Além do carro pipa não chegar, os moradores não têm condições financeiras de arcar com o gasto. "Somos pobres", dispara Margarida. Ainda de acordo com ela, a água para beber é fervida. "A gente ferve a água porque não dá pra beber e tomar banho com ela assim. É um pouco suja. A gente só não ferve quando é para regar a plantação ou quando é para os animais tomarem", enfatiza.
Fotos: Leo Motta

Água chega no ombro, vinda de um poço localizado a cerca de 200 metros da casa da família, Nem carro pipa chega até a localidade. "Somos pobres".

Única proteção para s crianças é ferver a água antes de preparar a sua comida. Segundo as mães, doenças graves nunca ocorreram por "proteção divina"
Para o aposentado Noel, a filha dele de três anos também sofre com a falta de água encanada. "Eu faço de tudo por essa menina e fico triste porque eu sei que ela sofre muito. Toda vez que ela me vê carregando água, ela quer ajudar. Eu dou um copinho plástico pra ela levar um pouquinho de água. Ela fica tão feliz que você nem imagina", comentou emocionado. Segundo ele, os moradores da casa ao lado, que foi construída pelo aposentado, fazem parte da família Conceição, que tem parentesco com a Nogueira. "Nossos vizinhos fazem parte da nossa família, a dona da casa é prima da minha mulher. Eu mesmo levantei a casa deles em dois meses. Ela tem uma filha que, assim como Priscilla, sofre bastante", comentou.




Com um bebê de dez meses no colo, Noêmia da Conceição, de 26 anos, não tem escolha e pega água no poço. "Eu pego a água pra dar banho em Allana e pra fazer a comidinha dela, mas eu sempre fervo antes. Dá um trabalhinho porque tem que esperar esfriar. Sem falar que é horrível ter que ir buscar lá embaixo. Ainda bem que Deus protege muito a gente. Allana nunca teve nenhuma doença", revelou a dona de casa.

Foto: Leo Motta Portal FolhaPE.

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